sexta-feira, 8 de novembro de 2013

'É triste a saudade longe de você...'

Perder faz parte da vida. Temos que perder a proteção do seio materno e o medo de dar o primeiro passo. Depois, temos de perder os dentes para outros nascerem. Perdemos amigos porque mudamos de escola. Perdemos coisas o tempo todo: o lápis, o óculos, as chaves. A maioria das perdas servem para melhorias, aquele caminho era necessário por causa disso. O outono é necessário por causa da primavera. Mas eu fui a primeira das bisnetas. E perdi muita coisa. É curioso como perdemos muita coisa também por deixarmos de ver. Nos decepcionamos e deixamos aos poucos de acreditar no outro. Vemos um show de horrores, e paramos de acreditar nas belezas do mundo. Mas parece que só damos conta do ciclo da vida e da nossa impotência, quando aqueles que nos deram início, as raízes começam a partir. Partir para uma dimensão que eu não posso frequentar. Ainda. Demorei a começar a ir em velórios, parece que minha mãe sabia que quando um começasse, sequenciaria uma reação em cadeia. O primeiro a partir foi o vô Geraldo. Dele eu não pude me despedir, porque era pequena demais para estar em hospital. Com ele, tive de dizer adeus às brincadeiras de lego e à coragem que ele demonstrou enfrentando todos quando minha mãe solteira ficou grávida de mim. Ele e a dona Norma foram os únicos. Foi dele também que meu avô herdou o me chamar de "fia". Quando a bisa Maria se foi, eu tinha pouco contato com ela, mas mesmo assim, com ela morreram ave-marias de seis da tarde, o barracão grande da fazenda, os deliciosos cachorros-quentes. Depois, foi a bisa Norma. Ela foi de fato meu grande choque, minha saudade cicatriz. Tive de dar tchau à minha parte Italiana, a uma das melhores pessoas que já existiram na Terra, da paixão por futebol e comida, dos Natais-matinês. Com ela, pilar central, caiu toda a minha família, que está espalhada por aí, em algum lugar. Há dois anos, meu segundo grande choque: um biso saudável que partiu do nada. Padeceram a alegria nata, o dom de contar piadas, o fanatismo pelo São Paulo e pela Rubra e as balinhas sortidas que fizeram meus dias. Sobrou a dona Morena. Personalidade forte, a última das minhas bisavós. Sem seu bem, perdeu o gosto pela vida. E eu a entendo. Em mortes de repente sempre me lembro do texto que o Pedro Bial publicou no dia da morte do Bussunda: morrer é ridículo. Acordar com a morte gritando é silencioso. Dona América foi-se. Ela avisou que estava indo. Sentada do lado de seu túmulo custei a acreditar. Ontem tive de me despedir da última parte antepassada. Adeus fogueiras de São João, batismos e pés de figos, melhor pão de queijo do mundo, mãos que me davam banho, teimosia natural. Engraçado que durante muito tempo vários pensadores questionaram de que eram feitos os homens. Pobre homem, preso à matéria, quis definir-se por água, fogo, terra e água, depois, por sistemas, órgãos, células e átomos. Eu não. Eu sou feita de lego, barracão de fazenda, ave-maria, chá que cura, cachorro-quente, Itália, Natal, futebol, piada, balinha, fanatismo, banho, pé de figo, fogueira e pão de queijo. Com eles morreram grandes pedaços de mim. É difícil viver quando se sabe que a morte realmente existe e pode te surpreender a qualquer hora. O padre disse que a morte não é o fim. Espero em Deus que não. Caso contrário, morrer seria mais ridículo do que viver. Me sinto caindo de costas. Primeira bisneta sem todos os seus 'bisos'. Canceriana sem raiz. Como herança, espero que tudo que me compõe fique e que a bondade, a graça, a teimosia, a bravura, a simplicidade, a coragem e o amor incondicional se encravem em meu DNA para que eu posso passar aos meus filhos aquilo que grandes pessoas me ensinaram e eles não tiveram a chance de conhecer. Espero um dia ser bisa de alguém.